Bruna, Borges e o Outro

Bruna, Borges e o Outro

 

Onze de Agosto de 2001.Biblioteca Nacional em Buenos Aires.A palestra por se iniciar. No saguão, enquanto uns fumavam e outros contemplavam a galeria com as fotos dos imortais, um jovem brasileiro cochicha no ouvido da namorada: “Quem é este tal de Borges?”

 

A palestra versaria sobre o centenário de nascimento de outro argentino ilustre, o pensador e humanista Carlos Bernardo González Pecotche.

 

Recordei-me da linda atriz brasileira, que se transformara em escritora, e numa infeliz entrevista dissera nunca ter ouvido falar de Fernando Pessoa, que eu conhecera tardiamente, em setenta e dois, como o poeta argentino, em noventa e dois. Quanta perda de tempo! Tempo perdido não volta mais, ele flui como o rio de Heráclito e a areia, que desce firme e decidida na ampulheta.

 

Por muito tempo achei que àquele jovem faltava muita coisa. Depois compreendi que todos fomos iletrados um dia – se ainda não o somos – , e muitos tiveram paciência conosco. Bondade, mais bondade é o que faz falta; palavras mágicas que ecoavam em meus ouvidos há muito tempo, e eu deveria ter lido nuns escritos de González Pecotche. Se eu não tenho paciência com os outros, como poderiam tê-la comigo? A Natureza ensina paciência. O sol também.

 

Recordei-me do Livro de Areia, do Outro, onde Borges maduro encontrava com o outro Borges, o jovem, em 1969, ao norte de Boston, em Cambridge, e os dois conversam sobre a eternidade, a juventude, a velhice, a morte e a arte. Falam da família, do pai morto e seus gracejos contra a fé, o defunto com uma mão de criança sobre a mão de um gigante, e um Jesus a falar como um gaúcho através de parábolas, para não se comprometer.

 

Borges deixou um exemplo grandioso: a criação não depende dos olhos sãos, do computador ou da parafernália eletrônica. Foi capaz de produzir a parte ponderável de sua obra depois de adentrar a escuridão, desmistificando a ideia de que a tecnologia e a visão física perfeita pudessem trazer uma felicidade completa. Borges criou e sobreviveu, apesar da cegueira, como Cervantes, apesar da prisão.

 

O maior cego não é o que não pode ver, mas o que não quer entender.

 

Falaram sobre livros e Whitman – o incapaz de mentir -. Num de seus poemas, Walt Whitman descreve a desconcertante experiência ao assistir a uma palestra de um grande astrônomo, que apresentava seus gráficos, números, mapas, diagramas, e se enfastia, se aborrece com aquelas explicações acadêmicas, saindo, então, do auditório, e, à rua, “no ar úmido e místico da noite” pode olhar, “em perfeito silêncio, para as estrelas”.

 

A expressiva lição da realidade da infinitude do Universo que nos cerca, bem como do mundo mental, que a tudo interpenetra e compõe, deveria ser muito mais bela e instrutiva do que a mera racionalidade pudesse descrever. ”Não posso conceber nenhum ser mais maravilhoso que o homem”, dizia o poeta da meia – noite, do sono, da morte e das estrelas, que se autoconsiderava uma espécie de deus libertador americano.

 

A poesia de Whitman é saudatória, como a de Fernando Pessoa, quando o poeta português saúda-nos, deseja-nos sol e nos dá a sua poesia. Ao despedir-se dos seus versos, do alto de sua janela, após concluir que passa e fica, como o Universo, deseja para si mesmo – e para sempre – um cenário como aquele: um dia cheio de sol.

 

No poema Eros e Psique, ele relata a aventura do Príncipe fadado a procurar pela Princesa dormida e descobre, ao final da aventura, que ele mesmo era a Princesa que dormia.

 

Para González Pecotche, existe no interior de cada indivíduo um ser encantado, adormecido, encoberto e escondido que quer se manifestar. O encontro de Borges consigo próprio, num tempo qualquer do passado, poderia estar representando a culminação de uma procura incansável, que muitos jamais chegam a concluir.

 

Depois de alguma conversa, Borges e o outro, sobrenaturalmente, se despediram, e nunca mais se viram, nem souberam, ao certo, se aquele encontro e a conversa foram reais, da mesma forma que eu não sei se aquele jovem brasileiro era uma personagem, ou alguém que realmente existiu.