Deus em tudo

Deus em tudo

 

 

Visto por muitos de seus conterrâneos como inimigo da Igreja e do Estado, Espinosa foi combatido e ofendido em não poucas obras de sua época por ilustres pensadores como Voltaire e Leibniz, embora tivesse admiradores não menos importantes como Goethe e Herder. Transitou entre o maldito e o bendito (Baruck), que carregava no nome.

Ele nasceu em 1632, Amsterdã, numa família judia vinda de Portugal por causa da Inquisição. A comunidade judaica não o aceitava por criticar as contradições do Antigo Testamento. Foi perseguido, expulso e amaldiçoado pela sinagoga. Para sobreviver, fabricava cristais de lentes. Lutou por defender a liberdade de pensamento, pois a falta dela criaria a corrupção, a falsidade e a hipocrisia.

Morreu solitário, aos 44 anos, sem que o mundo conhecesse suas obras mais importantes. A solidão, o anonimato e a coleção de inimigos foram suas marcas na curta trajetória neste pequeno planeta.

Como bem disse Novalis, “Espinosa é um homem ébrio de Deus”. Diferentemente de Descartes, para ele a filosofia começava com Deus; para o francês, a certeza de Deus vinha da certeza de si mesmo.

“Não podemos estar mais seguros da existência de nenhuma coisa que a do ser absolutamente infinito e perfeito, ou seja, Deus. Como sua natureza exclui toda imperfeição, elimina, desse modo, todos os motivos para duvidar de sua existência e proporciona a maior certeza sobre ele”, escreveu.

É um Deus diverso do ortodoxismo judaico e cristão; para Espinosa, o homem é um pensamento de Deus, que é tudo e está em tudo.

Se Deus não pode ser revelado por nenhum profeta ou mensageiro, fica entendido porque o filósofo foi considerado um inimigo pelas religiões constituídas.

Para ele, Deus é razão (logos), como também coração, amor; a fusão da suprema razão com o amor. Difundiu ser importante experimentar a Verdade, e não somente estuda-la, pois ai surgiria a compreensão do amor. Em sua ética encontramos a questão do livre arbítrio como algo a ser conquistado; quanto mais liberdade, maior responsabilidade, muito a ver com o grau de consciência.

Existe um paralelismo entre o pensamento de Espinoza e o de Sócrates, para os quais homem não era o compacto, o tocável, senão o invisível, o da essência. Afirmava que todo o ser humano tinha em seu interior tudo para se desenvolver; deveria primeiro conhecer-se, e depois o circundante; o princípio da sabedoria consistiria no reconhecimento da própria ignorância. Ambos foram condenados pelo poder político, por opor-se às ideias dos governantes e não cultuar suas personalidades, e nem as divindades do Estado.

Apesar de ter a oportunidade de fugir, o filósofo não o fez. “Sócrates é imortal. Podem matar o invólucro de Sócrates, mas Sócrates é imortal.” E, segundo Platão, enfrentou a morte com serenidade. Talvez por ter compreendido ser a morte o não pensar, a submissão aos pensamentos pensados por outras pessoas e à cruel ditadura dos mercadores da Verdade.

Para Espinoza, a verdadeira salvação consistiria no conhecimento, oposto ao fenomênico e sobrenatural, forjadores das bases do ateísmo. Afirmava que as religiões sobreviveram através de dogmas rígidos.

Olhar as coisas sob a perspectiva da eternidade era uma das principais bases de seu pensamento. Deus é tudo, e tudo é Deus. Pensar em si mesmo é pensar em Deus, e não uma forma de egoísmo. A substância essencial que tudo interpenetra é Deus, regedor de tudo, cujas leis podem ser conhecidas.

Apesar do avanço conceitual e do distanciamento dos preconceitos vigentes, Espinosa não foi capaz de vislumbrar a forma de se realizar o contato consciente com estas realidades, e nem como empreender um processo de aperfeiçoamento individual. Mais intuitivo que objetivo, deixou um legado importante para o pensamento das gerações que o sucederam.

 

Nagib Anderaos Neto

Extraído do livro Deus e os Detalhes