Numa carta escrita ao amigo Rangel, em quatro de Janeiro de 1904, dizia Monteiro Lobato: “Quando tudo mudar, daqui a cem anos, quem vai interessar-se pelas idéias de Lentz? “. E, algum dias depois, dia 20, “Lentz simboliza a Alemanha perigosa que eu tenho medo surja de Nietzsche…”
Em 2006, 102 anos depois dessas cartas, encontrei-me com as ideias de Lentz na Patagônia, Livraria Café de La Barca, San Carlos de Bariloche.
Livros, café, tango, jazz e música clássica. Nos últimos vinte anos noticia-se que caiu pela metade o número de leitores entre os jovens no mundo.
“Criem cafés literários”, teria sugerido um célebre escritor.
No cardápio do café, uma sugestão para o dia: “Busque o lado bom de todas as pessoas”.
A Cordilheira, com sua alva imensidão, lembrava o mar, tão belo e instrutivo, movimento perpétuo e elementar, como a solidão gelada da Patagônia.
Naquela pequena livraria reencontrei Georg Büchner no livro dedicado a Lentz, em cujo prólogo vi-me transportado ao passado, onde a descrição da curta trajetória do dramaturgo alemão – que morreu precocemente aos 27 anos – ressaltava algumas obras importantes como “A Morte de Danton”, que havíamos montado há 40 anos, no inicio da faculdade.
“A arma da revolução é o terror”, bradava Robespierre, a personagem de Büchner, que eu interpretara em tantos ensaios da magnífica e histórica peça, a qual nunca chegamos a estrear. Havia uma grande angústia, enorme carga dramática no texto, cujas motivações agora ficavam mais claras: Büchner estava a fugir da polícia e da justiça, por ter criado uma sociedade de direitos do homem em 1835, Estrasburgo, e se oposto aos poderosos, opressores, impostores, ansiando por uma Revolução Alemã, como a Francesa. A polícia o vigiava; e neste dia de grande excitação escreveu “A Morte de Danton”, produto de uma longa pesquisa feita, espelho do fatalismo da história.
Escrevera numa carta à família: para a classe majoritária existem somente duas molas: a miséria material e o fanatismo religioso. “Todo o partido que saiba manejar estas molas triunfará. O nosso tempo precisa de ferro e pão, e depois de uma cruz, ou qualquer outra coisa.”
Büchner recuperou Lentz – o poeta proscrito que fora amigo de Goethe e admirado por Kafka , que se transformou num paradigma para a psiquiatria por ter sido a primeira descrição exata de esquizofrenia, para a qual Nietzsche lhe colocou um nome: o niilismo, a filosofia do nada – .
A pequena livraria na Patagônia era uma miniatura da grande e majestosa Ateneu em Buenos Aires, na Santa Fé, com o café situado no palco do teatro, que tinha como platéia e galeria estantes e mais estantes de livros.
Não, o povo não precisa de pão e circo, senão de livros, bons livros, e boas escolas, que ensinem as crianças a pensar, ao invés de papagaiar historias antigas e sem sentido, ou a decorar os teoremas do preconceito.
Quando se vê as estatísticas sobre produção e consumo de livros no Brasil, número de livrarias e desenvolvimento do mercado livreiro, chega-se à conclusão que o quadro nacional é desalentador.
Como revertê-lo? O que fazer para que os jovens passem a ler mais e a matar menos o tempo em inutilidades?
Afinal, por que ler é importante?
Não falemos da literatura imprestável, dos enganadores, impostores, que vendem palavras sem conteúdo, auto-ajudas que pouco valem. Falemos das obras de qualidade, que ajudam a pensar, criar, se comunicar.
O leitor é também um criador orientado pelo autor; constrói personagens, convive com eles, extasia-se, sofre, transporta-se para outros locais e épocas, busca soluções, pensa, sente e vibra com o desenrolar do romance ou do conto, reflete com as reflexões do autor, amplia seus conhecimentos sobre o mundo e os homens, aprende a ouvir, falar e escrever.
Através da leitura e da escrita podemos chegar a muitas partes e mundos, visitar o passado e arrojarmo-nos ao futuro, reviver ou viver por antecipação.
Cada bom livro é uma aventura particular e única, que pode ser muito útil a quem empreende esta viajem. Os livros são como os seres humanos: nascem, tem um tempo de vida e desaparecem. Podem surgir depois de muitos anos em novas edições, se forem muito bons. Há os que têm conteúdo e os vazios, os bons e os maus, os inteligentes e os ignorantes. Sua leitura pode ajudar a leitura da vida, dos dias, do próprio acontecer.
Devemos todos ler muitos livros, bons livros, e dar um exemplo para que os jovens aprendam a gostar de ler.
Há um livro especial, ao qual devemos dar a máxima atenção: a nossa obra, o livro da vida, aquele que vamos escrevendo e lendo a cada dia, no qual somos autores e personagens, onde ficará consignada a nossa trajetória humana na breve passagem pela Terra, o livro dos livros, a obra pessoal que cada um pode e deve realizar.
Criemos bons livros, e livrarias, e cafés literários, como bem aconselhou um célebre escritor.
E, parodiando o mestre Lobato: um país é feito de homens e livros.